Nos dias atuais nos preocupamos demais com a extensão e quantidade das coisas.
Queremos ser superprodutivas: praticar esportes, falar línguas, tocar instrumentos, trabalhar, produzir conteúdo educativo , cozinhar, ler vários livros, participar de cursos on-line , lives, webinars... a famosa FOMO : Fear of Missing Out . Traduzindo: medo de ficar por fora do que está rolando !!!
Cansativo ? Não !! Prazeiroso. Porém cabe aqui uma reflexão : de tudo que fazemos, o que realmente merece ser aprofundado ? Quais atividade estão profundamente ligadas à nossa essência ?? Existem coisas que fazemos porque a sociedade nos impõe. Outras atividades servem apenas pra massagear o EGO. Nada de errado aqui !!! Mas é preciso perceber esses movimentos para não se deixar aprisionar.
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Colocar todas as peças desse xadrez num tabuleiro e avaliar a importância das mesmas no jogo da vida me parece difícil, porém imprescindível. .
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Outro dia uma paciente me provocou uma reflexão :
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Jovem, tímida, quase não me olhava nos olhos. Certamente insegura.
Queixa ? Nódulo na mama.
Examinei e facilmente constatei tratar-se de um nódulo benigno . Comecei a discorrer sobre os achados, tranquilizando-a quanto ao risco de neoplasia, dizendo que aquele nódulo não aumentaria seu risco de câncer e tampouco se transformaria em doença maligna.
Notei que não havíamos nos conectado. Ela não se mostrou tranquila e aliviada como a maioria das pacientes nesse cenário . Me falou sobre uma dor nas costas que havia começado há 1 mês .
Tratei de prosseguir - “ Ahhh isso é tensão muscular ! Vc ficou tensa ao sentir esse nódulo, e a musculatura contraída dói , inclusive nas costas , mas fica tranquila !! Não tem nada que se preocupar, esse nódulo é super comum, você é Muito jovem pra ficar pensando em doenças!!!!”
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Novamente o silêncio. Não houve sequer um esboço de satisfação.
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Voltamos para a sala de consulta e nos sentamos frente a frente. Era nítido que não havíamos nos conectado.
A paciente prosseguiu : “ vou falar mais uma coisa que sinto... porque acho melhor vc saber. Tenho uma dorzinha aqui em baixo do umbigo . Fraca, mas às vezes aparece...”.
Agora estava claro. Havia algo importante a ser dito e ela estava procurando um caminho .
É incrível como a escuta ativa nos possibilita perceber essas coisas. Ok. Vamos APROFUNDAR aqui. Interrompi meus discursos de médica especialista em mama. Dissequei profundamente o sintoma abdominal, ouvindo passivamente e com atenção todos os pormenores. Chegamos então no assunto : Alimentação .
Nesse ponto ela fez uma longa pausa e disse : “ aprendi a fazer alguns alimentos diferentes e com fibras, como a senhora está dizendo. Meu marido precisou mudar toda a alimentação e como cuido dele, comecei a fazer comida em casa usando mais legumes e verduras “ .
“Cuido dele ? “
Eu quis saber : “Porque cuida dele ? “
“Ah ! Ele está terminando o tratamento para um Linfoma Hodking . Há alguns meses foi diagnosticado, logo após nosso casamento.”
Chegamos ao ponto. Finalmente ... aqui a história precisava se aprofundar . Percebi a felicidade no seu rosto ao poder dividir comigo os detalhes de tudo que ela estava passando. Todos os planos e sonhos interrompidos, a dificuldade de fazer um diagnóstico e principalmente, a admiração pela maneira que seu jovem companheiro estava enfrentando tudo isso.
Obviamente cada dorzinha a deixava com medo. Medo de adoecer. Medo de não poder cuidar do seu marido. Medo da finitude.... era essa a conexão .
Senti um amor profundo por aquela criatura e obviamente uma vontade de levá-la pra minha casa... 🤷🏻♀️
Não cheguei a tanto. Porém criamos um vínculo de confiança para que ela possa acessar quando precisar. O nódulo ??? Quase desapareceu durante a consulta. Ficou pequeno e banal.
E é exatamente isso que me move. Aprofundar.
Conhecer as pessoas e sentir a compaixão borbulhar no coração .
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